Fui guardador de rebanhos sem flauta, sem outeiro .
com páginas colhidas nos livros a eito, em linhas altas lidas
quando descansava o rebanho e a paisagem tinha escritas
árvores ao sol, frutos ardidos, poeira de brisa, manga curta,
camisa desfraldada
eu, na sombra recolhido.
Fui pastor de quase nada
no canto dos pardais revoadas, bicando o ar de linhas curvas
nas largadas de pombos ao fim da tarde
ou das rolas sobrelançadas, furando o céu, na declinada
água ferida de redes, esvoaçando penas picavam linhas cinzentas,
mosquiteiras
sob o atarantado das borboletas vermelhas, verdes, azuis na
presa dos rendilhados,
desembaraçavam-se das grilhetas fechadas a puxão de espera,
magra caça.
Fui companheiro dos bichos que encontrava desirmanados em
fugas desajeitadas,
do lagarto escamado a verde e azul,
da cobra serpentina preta num ápice engolida pelo feno,
da lebre fugitiva e astuta à noite sob o trilo dos grilos
ou da batuta da campainha das ovelhas.
Fui guardador do mundo no chão das ovelhas
presas por linhas que nos meus livros deixaram às vezes espaços
de página em página,
onde eu me lia e guardava num mundo lido alto; de tempo a
tempos
a passagem dos comboios, lentos, de horários certos, horas
secretas
do calor dos dias, na convocatória das madrugadas,
de quando um rio horas a fio as alinhava,
as abria por dentro filtradas a sol alto, baixo ou à ferida dos
ventos,
da capa que me protegia da água dos dias raros em que chovia.
Guardei ovelhas,
guardei as revoadas dos pombos no meu coração.
Fiz as minhas viagens directas abandonando o meu fôlego de
bicicletas, ardendo por
dentro dos livros, onde recompunha escombros,
unindo amiúde as quebras do mundo.
Guardei ovelhas não guardei cabras,
como meu irmão já muito mais velho Miguel Hernandez
que fez tantas descobertas em horas tão incertas,
numa Espanha de tempos muito antes dos meus.
Hernandez morreu no cárcere sem ceder um traço na rebeldia
dos versos
de puxar as palavras do avesso
de se afastar do terço
de se irmanar com as cabras que pastava em Orihuela.
Guardei ainda mais rebanhos,
guardei ainda mais ovelhas sendo outras ou as mesmas,
quando os pastores fugiam em debandada de noite
por sangrarem neles solidões
nos longes dias, nas longas horas que havia no pastoreio do gado
manso,
na rebeldia dos ocasos em que o sol menos aquecia,
o gado aproveitava e comia,
o tempo em que andava pardo e comia.
os pastores fugiam,
como se de prisões de guardar do gado
levavam a flauta de Marília ou de Elisa
voltavam em mangas brancas de camisa
festejando aparecimento, fazendo promessas:
juravam a água, o sol, os frutos,
juravam afeiçoamento às crias, pertencer à família
queriam-se nos rituais do gado,
na separação, no aprisco
nos canjeirões de leite
no fazer do queijo, um fruto nascido por suas interpostas mãos,
liso, aceso,
milagre do coalho ardido nas palmas árduas, nuas
juravam por fim as geadas aos espelhos,
saudavam, cumprimentavam de quem viesse a sua vaia mão
apertar.
Mas fugiam às solidões dos dias,
ao fumo das neblinas das manhãs,
ou à intrépida chuva,
ao calor que a noite amealhava,
ao pastoreio úbero logo no Outono.
Corriam as estradas com assombro,
iam as casas longínquas pedir água,
veio o seio insinuado das raparigas, pedir-lhes compromisso de
guerra,
dos dias curtos de que estavam à espera,
estudavam-lhes o cabelo,
viam-lhes o manear das ancas,
a escultura da perna.
Bebiam água pelo púcaro, enchiam o cantil,
enquanto outros dobravam assobios também à espera de uma
madrinha mulher
uma fada de dias ilesos
que presos hoje ou presos depois
se queixassem da condição escondida das mais altas solidões.
eu fui pastor pequeno que levava recados maravilhados
e trazia água, água,
a água dos Invernos ou dos Verões que eles bebiam serenos.
Os momentos amenos, a sede insegura, a água fresca, quase pura.
Naquelas horas sem batida de relógio o coração a pulso,
eu compreendia aquele mister,
aquelas guardas de horas, como se o cavalo do tempo ficasse
suspenso nos ares
e a ele viessem pousar no dorso uma chuva de borboletas.
Li-lhes as minhas letras de livros,
alguns deles ouviam comovidos com os cajados fincados no chão,
como se supensa ficassem a página,
as surpresas, as desfeitas do formigar do amor, a incompreensão
dos dias.
A comunicação espalhada no chão
onde laboravam formigas, o milhafre sob arco as via a pino,
e em queda livre as devorava no montículo.
Apenas uma ou outra ovelha se sobressaltava,
soprava um ar de brisa deslassado.
Alguns queriam ler, eram-lhes fáceis,
as horas pediam-lhes entretém,
jogavam pedras ao ar,
desfiavam a contar glórias inúteis
à noite andavam horas e horas a pé,
à procura do destino de um café.
Juravam vinganças vindouras e com vassouras exorcizavam
os pés.
Eram eles, os pastores, os pastores muito senhores de muita
solidão,
os pastores de casa de meu pai,
os pastores de quem meu pai guardava distância de respeito
consentido
que dava folga ao domingo e me tirava as minhas corridas de
bicicleta,
a bola entre pés,
os livros de página vincada,
a procura das minhas belas, desejadas.
e me tornava pastor,
eu também era o pastor dos domingos
eu era pastor de rebanhos de domingo
como Miguel Hernandez muitos anos antes foi pastor de solidões.
Eu não era pastor de solidões,
eu tinha livros,
eu aprendia o ofício dos dias,
o mais puro ofício dos dias, a solidão de estar comigo.
Fui o pastor de meu pai nas horas das aflições
em que feitas previsões se dava o descanso aos pastores,
em que se fechavam de amores inconfessáveis pelas madrinhas de
guerra,
pelas suas gratas madrinhas de guerra,
as madrinhas de guerra que pensavam
ter solidões de muitas esperas, agora as do gado,
depois com uma guerra, um coração de mulher não se abria,
eles eram de outra natureza,
embora a integridade às vezes tendesse à aspereza de uma palavra
maldita,
e acudia a desculpa logo aflita
não se abria o coração de mulher com a promessa de uma guerra,
isso não tornava íntegra a espera -
- dizia minha mãe aos pastores que dispostos nos seus amores
lhe entregavam como penhor
os seus segredos,
- à guerra vais
- da guerra voltas
- não temas na incerteza
não se abre o coração de uma mulher, com a promessa de uma
guerra,
se assim for abre-se a porta do medo.
Eu fui guardador de rebanhos,
interroguei as coisas simples:
o silvo das cobras,o piar dos mochos à demanda das noites,
a queda do sol nos pinhais,
o regresso dos pombos,
os pavões que só desferiam grito aquela hora,
o zurro de um burro que dividia o dia em duas partes.
Fui guardador de rebanhos
e interroguei as coisas simples:
a ordem dos dias suspensos,
o labor dos pássaros,as asas das borboletas,
bebi o leite a mojo úbere
a regalo dos pastores.
Um alimento exacto e seguro
no contentamento puro dos meus cinco anos
E a minha mãe dizia-lhes...
As mulheres dão-vos o alimento pela colher,
acodem aos filhos a ralho,
acreditam no embalo das sereias nas águas cativas do mar,
têm sempre as mãos cheias,
que mais delas se pode imaginar.
José Domingos Marto ( Portugal ), modalidade Poesia, 1º Prémio.
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